Tudo o que rasga sem sangrar
- Marisa Melo
- há 6 dias
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Há coisas que nos atravessam com uma precisão quase cirúrgica. Sem barulho, sem mancha, sem testemunha. Cortes tão exatos que não sangram. Só se percebe quando algo dentro escorre, não para fora, mas para o fundo. Rasgos invisíveis, dos quais ninguém desconfia, mas que mudam para sempre o modo como a gente se movimenta por dentro.
Nem toda dor é dramática. Algumas chegam como quem tira uma peça do tabuleiro sem avisar. Você continua ali, de pé, funcionando, rindo, entregando os compromissos, mas sabe. Tem algo faltando. Algo que foi arrancado com tanta sutileza que ninguém viu. Só você sente o vazio do que não está mais.
É assim que acontecem as desistências silenciosas. Não as que se anunciam com fim de conversa, mas aquelas que se instalam sem nome. Você para de tentar. Para de insistir. Para de explicar. Para de esperar. E quem olha de fora acha que você segue igual. Mas quem vive por dentro sabe: houve um corte.
Tudo o que rasga sem sangrar carrega uma elegância cruel. É dor limpa. É recuo sem cena. É a coragem de aceitar que aquilo não vai mudar. Que não adianta falar mais uma vez. Que não adianta se doar, se dobrar, se fazer acessível. Chega uma hora em que o corpo entende antes da mente. E nessa hora, não há argumento que convença.
Já vivi amores assim. Que não terminaram com briga, nem com porta batida, nem com mágoa declarada. Terminaram com uma última tentativa ignorada. Um gesto não notado. Um silêncio aceito sem reação. E de repente, já não era mais amor. Era só o hábito. Também já tive amizades que se desfizeram assim. Não houve ofensa. Só o acúmulo de ausências. De faltas pequenas, mas repetidas. De conversas que não vinham. De afeto que não voltava.
E há ainda os rompimentos que vêm de dentro. Quando escolhemos encerrar o ciclo. Quando soltamos o fio da culpa, o esforço do agrado, a obrigação de sustentar o que não vibra mais. A mão não treme. O peito arde, mas não hesita. São decisões íntimas, inteiras, definitivas. Nada dramático. Apenas o fim limpo do que não se sustenta.
O que rasga sem sangrar não se vê. Mas está ali, ditando cada escolha, cada passo, cada palavra que deixamos de dizer. Às vezes, é esse tipo de dor que mais nos muda. Porque não vem acompanhada de consolo, nem de plateia. Vem sozinha, como a maioria das coisas mais importantes da vida.
Não me interesso por quem grita, por quem faz cena, por quem se derrama com facilidade. Me interesso por quem conhece os próprios cortes e caminha com eles. Por quem já se recolheu no tempo certo. Por quem decidiu calar como quem corta o ar com a faca certa.
Há força em continuar de pé depois de um rasgo que ninguém viu. Há dignidade em não sangrar em público. E há beleza em não pedir que o outro entenda.
O que me forma hoje não é o que me feriu, mas o que eu soube encerrar. Tudo o que rasga sem sangrar me ensinou a ficar de pé. Agora, guardo a carne, afio o olhar e fecho a porta.
"Escrevo para não desaparecer. Se algo em mim tocou algo em você, então já não estamos tão sós. " MM