Tapete: arte estendida no chão do mundo
- Marisa Melo
- 16 de abr.
- 4 min de leitura

Há algo de profundamente humano em estender um tapete. Não falo apenas do gesto físico de desenrolá-lo sobre o chão, mas do ato ancestral de traçar limites entre o sagrado e o profano, o céu e a terra. O tapete é uma epiderme da casa, uma superfície que acolhe pés e histórias, um território que, antes mesmo das palavras, já contava algo sobre quem o criou e onde vivia.
Desde que o homem passou a se abrigar, a necessidade de criar um chão simbólico se fez urgente. Um chão que não fosse apenas terra batida, mas território cultural. Nasceu aí o tapete, ou melhor, nasceu uma forma primitiva de estender beleza e sentido sobre o solo.
Os primeiros tapetes surgiram entre os povos nômades da Ásia Central, tecelões do deserto e da montanha, que precisavam de abrigo e conforto no deslocamento constante. Teciam com lã de ovelhas criadas por eles mesmos, tingiam com pigmentos naturais, e, como quem borda o próprio destino, traçavam padrões que passavam de geração em geração, carregando mapas de identidade. O mais antigo que se tem notícia é o tapete de Pazyryk, datado do século V a.C., encontrado congelado em uma tumba siberiana, intacto, como se ainda aquecesse os pés de seus ancestrais.
Mas o tapete não é apenas objeto funcional. Ele é um suporte de linguagem, um campo poético onde arte, cultura e espiritualidade se entrelaçam. Em cada ponto tecido, uma narrativa silenciosa se desenha. Em muitas tradições, como nas persas, turcas e árabes, o tapete é oração, é mandala, é oferenda visual. Há tapetes que marcam direção à Meca, outros que celebram o nascimento, o casamento, a colheita. O que parece repetição geométrica esconde, na verdade, um código: estrelas, romãs, ciprestes, olhos, flores. Tudo diz algo. Tudo guarda um segredo.

Não à toa, os grandes impérios do Oriente Médio construíram boa parte de sua economia e prestígio cultural sobre o ofício do tear. O Irã, com sua tradição milenar de tapeçaria, fez do tapete persa um ícone universal de sofisticação. Cada região com sua assinatura: Isfahan, Tabriz, Qom, nomes que soam como música e que nos lembram que o tapete é também um lugar. Um lugar imaginário, portátil, mágico. Talvez por isso ele tenha sido associado ao voo. Tapetes voadores, tão presentes em contos árabes, são metáforas de ascensão espiritual, de travessias entre mundos.
E é nesse universo de tramas e histórias que minha própria relação com os tapetes foi se formando. Coleciono tapetes persas e paquistaneses desde 1995, uma paixão que surgiu quase sem perceber, em um leilão, quando me encantei por um pequeno Bukhara de vermelho profundo, carregava simbolismos que eu ainda não sabia nomear, mas que já reconhecia com a alma. Desde então, a cada nova viagem, os leilões passaram a ser um roteiro paralelo: cada cidade, cada mercado, trouxe um novo tapete, que, além da sua beleza, trazia um tempo, um gesto, uma memória sutilmente tecida nos fios.
Tenho tapetes que carregam o azul lapis lazuli dos azulejos iranianos, outros tingidos com romã seca, açafrão e casca de nogueira. Tapetes paquistaneses de tramas compactas e simetrias enigmáticas. Mas não os coleciono para que fiquem intocados: gosto de vê-los envelhecer sob os passos dos meus dias. Eles me conectam a esse gesto ancestral de tecer o mundo com as mãos.

Quando falamos de tapetes, falamos também de gênero. Em muitas culturas, são as mulheres que tecem. Mulheres anônimas, pacientes, sábias. Suas mãos costuram o tempo. Criam imagens sem pressa, como quem semeia. E ao fazê-lo, inscrevem sua subjetividade no mundo, num tempo em que quase nada lhes era permitido, tecer era uma forma de autoria silenciosa. O tapete é, então, um livro sem palavras onde a mulher deixava seu nome sem assiná-lo.
Na arte contemporânea, o tapete foi reencontrado por artistas que compreenderam sua potência simbólica e política. Não mais apenas peça decorativa, mas campo de experimentação e discurso. Artistas como Faig Ahmed, do Azerbaijão, desconstruíram o tapete tradicional com distorções digitais e alucinatórias, trazendo o passado para o centro da estética do agora. No Brasil, o artesanato têxtil, incluindo os tapetes de tear manual do Vale do Jequitinhonha ou os bordados de comunidades quilombolas, vem ganhando o lugar que sempre mereceu: o de arte maior, feita de gesto e memória.

É interessante pensar como o tapete se torna, em certos contextos, uma geopolítica em miniatura. O tapete que está embaixo da mesa de uma diplomacia, o que cobre o chão de uma sala de oração, o que delimita o espaço de uma performance. Ele marca território e ao mesmo tempo dissolve fronteiras. Ele convida o corpo a tocar o chão, a deitar, a rezar, a conversar. Ele humaniza o espaço.
E talvez seja por isso que, nas casas em que o afeto mora, sempre há um tapete. Gastos, desbotados, manchados pelo café ou pelas lágrimas. São vestígios de vida. Cada nó, uma permanência. Cada cor, uma lembrança.
O tapete é arte que se pisa, mas guarda em seus fios memórias que o tempo não apaga.