O Museu Não Foi Feito para Selfies
- Marisa Melo
- 27 de jun.
- 3 min de leitura
Atualizado: 27 de jun.

Nos últimos anos, os museus vêm reformulando seus protocolos e experiências de visitação. O que antes era orientado por códigos de conduta baseados em distanciamento, silêncio e reverência, hoje se vê atravessado por demandas de informalidade, engajamento digital e protagonismo do público. A presença dos celulares, a cultura da selfie e a busca por registros compartilháveis transformaram a visita ao museu em um evento performático. Mas essa aproximação, travestida de democratização, exige um alerta: o que se perde quando o museu se molda aos imperativos das redes?
O recente episódio ocorrido na Galeria Uffizi, em Florença, é preocupante. Um turista, ao tentar gravar um vídeo para um meme, tropeçou e danificou uma pintura de mais de 300 anos, do século XVIII. A obra, de Anton Domenico Gabbiani, foi rasgada e precisou ser imediatamente retirada para restauração. O museu, um dos mais importantes da Europa, precisou fechar a sala e repensar suas medidas de segurança. O diretor foi direto: a lógica das redes sociais está banalizando o museu.
E ele tem razão. Um museu que cede a todos os caprichos do contemporâneo abre mão da sua função primordial. A integridade do espaço museológico não pode ser negociada em nome da visibilidade ou do entretenimento. O museu não é cenário para vaidades, nem suporte para narrativas pessoais fabricadas em vídeo. O museu é uma instituição de memória, um guardião de acervos insubstituíveis, um espaço de suspensão do ritmo cotidiano para que o olhar possa se alargar.
A distância física entre o público e as obras nunca foi um capricho elitista. É um dispositivo técnico e pedagógico. Ela protege, mas também educa. Ensina a respeitar os limites entre contemplar e tocar, entre experienciar e dominar. Aproximar-se demais, no sentido literal, empobrece o que deveria ser experiência de deslocamento interior. A selfie feita a centímetros de uma obra não aproxima ninguém da arte, apenas da própria imagem.
É preciso reconhecer que vivemos tempos disrupitivos. A tradição museológica, construída ao longo de séculos, foi baseada em critérios que resistem ao tempo justamente porque compreendem o valor do que guardam. A ideia de que tudo precisa ser reinventado, de que ruptura é sinônimo de inovação, conduz ao esvaziamento. Algumas instituições precisam preservar suas formas para preservar também seus sentidos.
A resposta não está em interditar a presença das redes sociais nos espaços culturais, mas em impor limites claros. É possível comunicar, ampliar acessos e dialogar com novos públicos sem sacrificar a integridade do acervo. A tecnologia pode ser aliada, desde que subordinada ao conteúdo, e não o contrário. Museus precisam, mais do que nunca, recuperar seu papel de mediadores do tempo, e não apenas da imagem.
Preservar é afirmar que nem tudo pode ser comprimido na urgência, nem submetido à lógica do engajamento. Um quadro de três séculos não existe para servir de pano de fundo a vídeos efêmeros. Ele está ali para desafiar o olhar, para durar. E para durar, precisa ser protegido, não apenas fisicamente, mas conceitualmente.
Talvez seja hora de resgatar o pacto silencioso que sempre sustentou a visita ao museu: o de que não estamos diante de algo que nos pertence, mas diante de algo que nos excede. Algo que exige respeito, cuidado, distância. A reverência, longe de ser um gesto ultrapassado, pode ser o que ainda nos liga à responsabilidade de preservar o que vale mais do que a própria imagem.