top of page

O instante em que nasce uma ideia | Recortes Contemporâneos

Atualizado: 6 de nov.


Antes da forma, há o impulso. Antes do gesto, o pensamento em estado de luz. O instante em que nasce uma ideia não é o de uma revelação, mas o de um despertar, quando o invisível começa a ganhar contorno e o artista se torna passagem entre o que ainda não existe e o que está prestes a surgir.






ree



Há um instante anterior ao gesto. Antes que o artista toque o papel, o pincel, encontre a tela, o corpo se mova, algo já pulsa em silêncio. É nesse espaço impreciso, entre o pensamento e a forma, que nasce a ideia. Esse começo é muitas vezes invisível, mas é nele que se decide o destino da obra. O início é uma vibração. E compreender essa vibração é compreender o que mantém viva a arte.


Toda criação carrega um tempo de incubação, uma espécie de estado preparatório em que o pensamento ainda não se transforma em matéria. É quando o artista observa, recolhe, anota, hesita. A filosofia chamaria isso de instante de consciência, o momento em que o olhar desperta para o mundo e percebe algo que ainda não se configurou por completo. Na arte, esse instante se alonga. É uma suspensão do tempo, um espaço onde a intuição amadurece até se tornar forma.


Kandinsky escreveu que “toda obra nasce interiormente antes de ser exteriorizada”. Essa força interior é sobre a escuta daquilo que pede passagem. Há ideias que se anunciam de modo quase imperceptível: um reflexo, uma cor, uma frase ou um ruído cotidiano. Outras surgem com força súbita, e o artista mal tem tempo de resistir. Mas, em todos os casos, há um ponto de ignição, um encontro entre o sensível e o pensamento que transforma o comum em imagem.


Na história da arte, o momento da ideia sempre fascinou filósofos e criadores. Leonardo da Vinci, ao observar manchas nas paredes, dizia que nelas via paisagens inteiras. Para ele, a imaginação começava no acaso. Paul Klee, séculos depois, diria que “a arte não reproduz o visível, mas torna visível”. Entre os dois, há uma linha invisível que une o ato de ver ao ato de pensar. O instante em que nasce uma ideia é também o instante em que o mundo se reorganiza sob outro ponto de vista.


Nos ateliês, esse instante é tanto físico quanto mental. Há artistas que precisam do silêncio para que o pensamento se forme, outros encontram nas pequenas distrações o gatilho do inesperado. O início raramente é grandioso. Ele se manifesta nas margens: no rascunho, na mancha, no erro. O começo é o lugar do risco e, por isso mesmo, o mais fértil. Ao reconhecer esse estado, o artista aceita que o processo criativo não é linear, mas circular. Ele começa muitas vezes, e talvez nunca termine por completo.


O que há de filosófico nesse instante é a sua potência de não saber. Criar é sustentar uma pergunta sem apressar a resposta. É manter o olhar aberto o suficiente para que o mundo se revele de outro modo. Nesse sentido, o impulso de criação se aproxima do pensamento de Merleau-Ponty, para quem “ver é ter à distância”. O olhar artístico não captura, aproxima-se. Ele não se apropria do objeto, mas o envolve, permitindo que a forma nasça do encontro entre o visível e o invisível.


O começo de uma obra é, menos um ato de vontade do que uma abertura. Algo se apresenta e o artista responde. A ideia não é uma propriedade, mas um diálogo. E quanto mais sensível for o criador a esse diálogo, mais complexa será sua forma de pensar o mundo. Por isso, o instante da ideia é também o instante do espanto: quando o habitual perde sua evidência e o real se mostra em outra luz.


Pensar o instante em que nasce uma ideia é, pensar a própria origem da arte. Não o produto acabado, mas o processo oculto que o antecede. A filosofia do começo nos lembra que criar é sempre um ato de confiança: confiar no que ainda não tem nome, no que ainda não se vê, mas já existe em força.


Cada obra, antes de ser forma, foi apenas uma hipótese, um lampejo, um quase. E é nesse quase que o futuro da criação se renova todos os dias.



Marisa Melo



Recortes Contemporâneos é uma coluna de observação do tempo, entre a arte e a filosofia. Cada artigo procura compreender como a criação humana traduz a inquietude do existir e transforma o visível em pensamento.

Assine nossa Newsletter

Obrigado(a)!

Receba nossos artigos e convites diretamente no seu e-mail
 

© Copyright

© 2021 por UP Time Lab. 

Marisa Melo nas redes sociais

  • Facebook
  • Instagram
  • Whatsapp
  • Youtube

Selos MM

Downloads12.jpg

ARTECURADORIA
MENTORIA
         
EXIBIÇÃO

Anuncie
Seja o nosso entrevistado
Contrate biografia, crítica, livro

bottom of page