Monalisa do Sertão: entre o mito renascentista e a mulher da terra vermelha
- Marisa Melo
- 20 de out. de 2023
- 2 min de leitura
Atualizado: 15 de abr.

Andrea Mariano nos presenteia com uma obra que é, ao mesmo tempo, um reencontro e uma travessia. Monalisa do Sertão, pintada com acrílica sobre tela no formato 80x100 cm, é uma releitura de um ícone da história da arte, é um deslocamento simbólico, uma apropriação amorosa e uma recriação enraizada na cultura nordestina.
Ao vestir a musa de Da Vinci com o chapéu típico do cangaço, a artista inscreve essa figura milenar no mapa afetivo e cultural do sertão. E não se trata de uma paródia: há um gesto respeitoso, de transportá-lo ao solo paraibano, com toda a reverência que isso exige.
A paleta de cores fala com o calor da terra. São tons quentes, incandescentes, que parecem ter sido extraídos diretamente do chão rachado sob o sol, vermelhos vibrantes, laranjas em brasa, amarelos que queimam como a luz do fim da tarde. O fundo da obra pulsa em chamas suaves, um crepúsculo que ecoa o clima árido e ao mesmo tempo fértil do sertão. É uma atmosfera que aquece e envolve, quase como se a tela exalasse calor.
O rosto da Monalisa, no entanto, conserva o mistério do original, mas agora atravessado por pinceladas de azul, verde e branco que evocam não só sombra e luz, mas também a água sonhada do sertão, esse bem escasso que se transforma em desejo pictórico. Os cabelos, longos e cacheados, escorrem em matizes improváveis, um azul esverdeado quase líquido, que ondula como as poucas veredas que cruzam o semiárido. Há algo de sagrado e onírico nesse rosto, mas há também traços de força e malícia, como se essa Monalisa soubesse dos segredos da terra e da sobrevivência.
O cacto, imponente em primeiro plano, rompe com a clássica simetria da composição original. Ele se impõe como sentinela, como se guardasse o território da tela e sua protagonista com espinhos e silêncios. É um símbolo não apenas da flora local, mas da dureza e da delicadeza coexistindo no mesmo corpo.
A pintura carrega, portanto, uma tensão poética entre o tempo e o lugar, entre o clássico e o popular, entre o mito europeu e a mística sertaneja. Andrea não apenas ressignifica um ícone, ela o reinscreve em nossa paisagem simbólica, devolvendo-lhe corpo, cor e pertencimento. A pintura é uma reflexão sobre os deslocamentos da arte e da identidade. Em cada pincelada, sentimos o peso da história e o sopro da liberdade criativa. E é nessa fusão entre o sertão e o mundo, que a obra encontra sua verdadeira força: ela nos pertence.