Para Karla Lessa, vida e arte se entrelaçam de forma indissociável, criando uma narrativa que vai além do campo visual e alcança o emocional. Carioca e formada pela Escola de Belas Artes da UFRJ, Karla é uma artista plural, que abraça a liberdade como eixo central de sua expressão criativa. Seu processo é marcado pela experimentação incessante de técnicas, materiais e linguagens, permitindo que cada obra reflita tanto sua personalidade quanto a mensagem que deseja transmitir.
Transitando entre a abstração geométrica e o cubismo, Karla também se destacou pelo domínio da técnica em nanquim, explorando nuances que dialogam com suas diferentes fases artísticas. Como escultora e entusiasta da tecnologia, ela incorpora ferramentas digitais para esboçar suas ideias, transportando-as do ambiente virtual para o universo físico, onde ganha forma e profundidade.
Sua trajetória inclui exposições em diversos países da Europa, consolidando sua presença no cenário internacional. Recentemente, Karla foi reconhecida com o prêmio de Artista Emergente de 2024, um marco que celebra sua originalidade e impacto crescente no mundo da arte.
Ao longo de sua carreira, ela passou por fases marcantes, das vibrantes e coloridas à monocromática sépia e preto e branco, até alcançar sua atual exploração do azul, tom que se tornou a paleta de sua produção recente.
Nesta entrevista, Karla Lessa compartilha suas reflexões sobre sua trajetória, inspirações e o que significa para ela viver a arte em toda a sua essência.

Como você enxerga a relação entre arte e liberdade no seu processo criativo? De que forma essa liberdade impacta suas obras?
Para mim, a arte e a liberdade estão absolutamente interligadas. A liberdade é o complemento do meu processo criativo, pois me permite explorar sem limitações, sem regras fixas. Quando estou criando, sinto que a obra vai se formar quase que sozinha, seguindo um impulso intuitivo. A liberdade me permite experimentar diferentes técnicas, estilos e materiais, sem medo de errar ou de me prender a algo que foi feito antes. Isso reflete diretamente nas minhas obras, que busca capturar a espontaneidade e a eficiência de cada momento de criação. Acredito que a arte, assim como a vida, precisa ser vívida com liberdade para se revelar em toda a sua potência.
Sua formação pela Escola de Belas Artes da UFRJ foi um ponto de partida importante. O que mais marcou essa etapa da sua vida como artista?
A formação na Escola de Belas Artes da UFRJ foi, sem dúvida, um marco fundamental na minha trajetória artística. O que mais me marcou foi o ambiente de troca e a possibilidade de ter contato com diferentes artistas e professores que me desafiaram constantemente a questionar e expandir minha visão sobre a arte. A disciplina técnica foi essencial, mas o que realmente me impactou foi a liberdade que tive de explorar, errar e refazer. Foi lá que percebi que a arte não é apenas técnica, mas também uma expressão pessoal e uma forma de diálogo com o mundo ao nosso redor. Esse período me proporcionou a base para entender minha voz como artista e me deu a confiança para seguir o caminho da experimentação e da inovação.
Você transita entre diferentes estilos, como a abstração geométrica, o cubismo e técnicas como o nanquim. Como essas linguagens dialogam entre si nas suas obras?
Cada uma dessas linguagens e técnicas tem algo único a oferecer, e todas se complementam de maneiras muito pessoais em minha obra. A abstração geométrica me permite trabalhar com formas e simetrias, enquanto o cubismo me desafia a fragmentar a realidade, criando diferentes perspectivas ao mesmo tempo. O nanquim, por sua vez, traz uma intensidade e profundidade, exigindo um domínio técnico que acrescenta precisão e força às minhas composições. Todas essas abordagens dialogam entre si no sentido de me permitir explorar diferentes dimensões do olhar e do pensamento. Cada técnica tem um papel dentro do todo, ajudando a criar uma experiência visual complexa que reflete tanto a ordem quanto a dissonância do mundo ao nosso redor.



Recentemente, você recebeu o prêmio de Artista Emergente de 2024. Como esse reconhecimento internacional impactou sua trajetória?
O prêmio de Artista Emergente de 2024 foi uma honra imensa e um marco importante na minha carreira. Ele trouxe uma visibilidade internacional que abriu novas portas e ampliou meu público, permitindo que minha arte fosse apreciada em outros contextos e culturas. Mais do que uma validação externa, esse reconhecimento reforça minha confiança no meu trabalho e na importância de seguir a minha própria voz artística. Ele também me motivou a continuar explorando novas possibilidades, sabendo que a arte tem o poder de impactar as pessoas de formas inesperadas. Esse tipo de reconhecimento me fortalece na busca por uma linguagem cada vez mais autêntica e ousada.
Sabemos que suas obras passam por fases distintas, como o colorido, sépia, preto e branco, e agora o azul. O que motivou essa transição para o azul como centro de sua pintura?
O azul surgiu para mim de maneira quase intuitiva, como uma cor que ressoava com o que eu estava vivendo e sentindo em determinado momento da minha trajetória. Eu sempre fui muito atraída por cores vibrantes, que trazem energia e movimento, mas o azul me trouxe uma sensação de serenidade, como se representasse um tempo universal. Essa transição é uma forma de refletir sobre as mudanças que estou vivenciando, tanto na arte quanto na vida. O azul, para mim, é uma cor que traz tranquilidade e mistério, e é esse equilíbrio que tenho buscado nas minhas últimas produções.
Você também explora o uso da tecnologia em sua criação artística, utilizando softwares para esboçar suas ideias. Como esse recurso transforma seu processo criativo e a execução de suas obras?
A tecnologia tem sido uma ferramenta incrível no meu processo criativo. Usar softwares para esboçar minhas ideias me permite trabalhar de maneira mais fluida, sem as especificações físicas dos materiais. A tecnologia oferece uma liberdade para experimentar rapidamente, fazer configurações e explorar diferentes versões da obra antes de ocorrer no formato final. Além disso, ela me conecta a um universo de possibilidades que seria muito mais difícil de acessar apenas com técnicas tradicionais. Eu posso, por exemplo, brincar com configurações, modificações de cores ou texturas que podem ser mais difíceis de realizar manualmente, e isso abre novas perspectivas para minha criação. A tecnologia também me permite mesclar o digital com o manual, criando obras híbridas que exploram o melhor dos dois mundos. Para mim, ela é uma extensão natural do meu trabalho, permitindo-me expandir minha visão e me manter conectada com as tendências contemporâneas da arte, sem perder a essência do meu processo criativo.


Com exposições realizadas em diversos países da Europa, como essas experiências internacionais influenciaram sua visão sobre a arte e sua carreira?
Expor em outros países foi uma experiência enriquecedora, não apenas por me proporcionar um reconhecimento mais amplo, mas também por me permitir observar diferentes formas de recepção da arte. Cada país tem uma sensibilidade única e isso me fez refletir sobre como minha arte pode se comunicar com diversas culturas. As exposições internacionais me ensinaram a ter mais confiança no meu trabalho e na minha identidade como artista, além de me permitirem um aprendizado contínuo sobre o mercado e as tendências globais. Essas experiências me desafiaram a pensar além das fronteiras do Brasil, a expandir minha prática e a encontrar novas maneiras de dialogar com o público.
Você fez duas exposições marcantes nos últimos anos: Viagem ao Fundo da Alma e Rabiscos da Alma: Um Diálogo em Nanquim, ambas com leituras bastante distintas. Em Viagem ao Fundo da Alma, você passa pela experiência de cinco anos de depressão, período durante o qual criou mais de 50 obras em nanquim. Já Rabiscos da Alma reflete uma nova fase da sua arte, que eu diria ser mais poética. Como você enxerga a transição entre essas duas revelações e de que forma elas impactaram sua carreira?
As duas exposições realmente representam momentos distintos em minha trajetória, mas ambas têm uma conexão profunda com o que vivi e com a minha busca por autoconhecimento. Viagem ao Fundo da Alma foi um mergulho intenso em um período difícil da minha vida, em que a depressão se tornou uma realidade constante. Durante esses cinco anos, o processo criativo se tornou uma forma de extravasar e traduzir aquilo que eu não conseguia colocar em palavras. As obras em nanquim, com sua carga emocional e sombria, refletiram a intensidade do que eu estava sentindo. Criar mais de 50 obras nesse período foi uma maneira de canalizar minha dor, mas também de dar forma ao que era abstrato e indefinido dentro de mim.
Já Rabiscos da Alma representa uma transformação, não só na minha arte, mas também na minha própria jornada pessoal. Após esse período turbulento, sinto a necessidade de buscar uma leveza, uma renovação, ou que se reflita nas obras mais poéticas e soltas dessa exposição. A fase dos rabiscos veio como uma expressão de liberdade criativa, quase como um retorno à infância, quando a arte era algo puro, sem pretensões. Essa transição me ajudou a libertar o peso da minha experiência e a reconectar com a beleza da simplicidade e do espontâneo. Em termos de carreira, essas exposições agregaram um novo significado à minha arte, não só pela evolução técnica, mas pelo impacto emocional e pelo novo entendimento de mim mesma enquanto artista. Foi um renascimento, uma redefinição da minha forma de olhar o mundo e a minha arte.





Sua arte é descrita como intelectual e emocional, mas também carrega um forte senso de humanidade. Que mensagem você mais deseja transmitir ao público através de suas criações?
Eu quero que minha arte fale sobre nossas emoções, nossa busca por sentido e nosso lugar no mundo. Acredito que a arte tem o poder de tocar as pessoas de uma forma profunda, seja trazendo alegria, reflexão ou até desconforto, porque é nesse desconforto que surgem as maiores transformações. A minha mensagem é de liberdade, de acessibilidade e de busca constante por conhecimento. Espero que minhas obras inspirem os outros a se conectarem com o que é mais profundo e verdadeiro dentro de si mesmas, e que encontrem na arte uma forma de expressão que transcenda as palavras e as imagens de maneira eficaz.
Ao encerrarmos nossa conversa, fica claro que Karla Lessa é uma artista cuja jornada não é apenas uma busca estética, mas uma vivência profunda e intensa. Cada obra, cada fase, é reflexo de suas experiências e de sua constante reinvenção. Sua capacidade de transitar entre técnicas, de explorar o universo digital e o manual, revela um compromisso com a arte que vai além da superfície, buscando sempre um significado mais profundo. Karla é um exemplo de resiliência e de como a arte pode ser um reflexo do ser, de suas dores, alegrias e descobertas.
Agradeço imensamente a Karla por compartilhar um pouco mais sobre sua trajetória, seu processo criativo e as transformações que, com tanto empenho e dedicação, marcaram sua carreira. Sua história inspira, não só artistas, mas todos aqueles que buscam, através da arte, expressar as complexidades da vida humana. E, como ela mesma disse, "a arte acesa". Que sua chama continue a brilhar, iluminando novos caminhos e novas narrativas. Marisa Melo
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