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Gavetas que não se abrem sozinhas



Fui tantas, escrevi todas — 2020, p. 13_MM
Fui tantas, escrevi todas — 2020, p. 13_MM

Mexer no passado é coisa séria. Não é terapia de fim de semana, não é faxina de sábado, não é papo de bar. Remexer o passado exige um tipo de coragem que não grita, mas pesa. Não é força bruta, é delicadeza em estado bruto. É saber que, ao abrir uma gaveta, você pode encontrar muito mais do que papéis velhos: pode encontrar uma versão sua que você ainda não sabe se está pronto para encarar.


Há lembranças que dormem como feras domesticadas. Enquanto estão quietas, parecem inofensivas. Mas basta puxar um envelope amarelado, uma fotografia esquecida, uma carta dobrada em quatro, e pronto: o coração dispara como se fosse ontem. E não foi ontem. Foi há anos, talvez décadas. Mesmo assim, a memória tem esse poder: reanimar o que já deveria ter virado pó.


As pessoas acreditam que olhar para trás é sempre um gesto de nostalgia, uma forma de se emocionar com aquilo que não volta. Mas não é bem assim. Mexer no passado é, antes de tudo, enfrentar. E enfrentar nunca é confortável. É admitir que muita coisa poderia ter sido diferente, mas não foi. É reconhecer que a dor existiu, que o amor acabou, que a decepção bateu na porta. É aceitar que não dá para reeditar a cena como quem edita um vídeo no celular. A vida não oferece versão estendida, não tem “tente outra vez”.


O risco de abrir certas gavetas sem preparo é acreditar que se pode corrigir o que o tempo encerrou. Querer que a conversa tivesse tomado outro rumo, que a relação tivesse outro desfecho, que o abraço de despedida tivesse sido mais demorado. Mas não foi. E ponto. Por mais que a gente resista, a vida só anda para frente.


Cada objeto guardado é uma pista. A passagem de trem daquela viagem que mudou tudo. O bilhete com um “te amo” escrito às pressas. A fotografia de um aniversário em que todo mundo sorria como se o mundo fosse durar para sempre. As lembranças não estão guardadas por acaso. Elas são a prova de que tentamos organizar o caos, dar forma ao que foi maior do que nós.


Mas há uma linha tênue entre guardar por amor e guardar por incapacidade de deixar morrer. E é nessa linha que mora o perigo. Porque mexer no passado pode reacender paixões que não têm mais lugar, pode reforçar ilusões que já se mostraram frágeis, pode nos jogar de novo num buraco de onde custamos a sair. Por isso é preciso equilíbrio: nem racional demais, a ponto de reduzir tudo a datas e fatos, nem sentimental demais, a ponto de transformar lembrança em novela.


A memória, para ser útil, precisa ser processada com cuidado. É entender onde dói e por quê. É identificar o que falta e o que, se voltasse, não caberia mais. Nem tudo que ficou inacabado merece um fim. Às vezes a beleza está justamente na interrupção. Algumas relações só ganham sentido quando vistas de longe. Algumas dores só cessam quando paramos de explicá-las. E algumas lembranças só ficam suportáveis quando aceitamos que jamais serão resolvidas.


Abrir gavetas não é ritual de limpeza, é exercício de maturidade. É sustentar a complexidade do que fomos sem medir com a régua de hoje aquilo que não sabíamos antes. O eu do presente só existe porque o eu do passado fez o que pôde, com o que tinha. Não cabe olhar para trás com soberba, como se agora fôssemos mais inteligentes. Hoje somos mais lúcidos porque já erramos o suficiente para aprender.


E é bom não confundir revisitar com reencontrar. Abrir uma carta nunca lida não significa ligar para quem a escreveu. Rever uma foto antiga não significa mandar mensagem para quem aparece nela. Às vezes, abrir o que estava guardado é apenas liberar a voz que ficou presa. É fechar um parágrafo que sempre pareceu suspenso. É dizer a si mesmo: “isso aconteceu, foi assim, acabou, e está tudo bem”.


Se existe liberdade nesse gesto, ela vem da escolha de não romantizar. O passado não precisa ser embelezado, nem resgatado. Ele só precisa ser aceito. Porque mais perigoso do que ignorá-lo é recriá-lo como se fosse desejo atual. E mais ingênuo do que fingir que ele não importa é achar que ele pode ser consertado.


O tempo tem seus truques. Um deles é nos fazer acreditar que aquilo que ficou para trás poderia ter sido diferente. Mas não poderia. Só parece assim porque agora sabemos o que não sabíamos antes. Isso não é culpa, é crescimento. É disso que se trata mexer no passado com equilíbrio: não é para reescrever, é para compreender.

E só quem entende a própria história consegue seguir em frente sem se repetir.


Gavetas não se abrem sozinhas. A gente escolhe o momento de puxar a alça, sabendo que pode doer. Mas também sabendo que pode libertar. Porque, no fim das contas, o passado não é inimigo nem salvador. É apenas parte de nós. E só faz sentido abri-lo quando temos estrutura para não afundar nele.

Marisa Melo


"Escrevo para não desaparecer. Se algo em mim tocou algo em você, então já não estamos tão sós. " MM


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