Autoralidade: o medo do plágio não pode ser maior que a confiança no próprio gesto
- Marisa Melo
- 23 de jan. de 2024
- 3 min de leitura
Atualizado: 24 de jun.

Há um instante secreto que só o artista conhece: o momento em que a obra se conclui. Não é sempre celebração. Às vezes, é despedida. Um ciclo que se fecha por dentro, com discrição, como se tudo que precisava ser dito já estivesse ali, pronto para ser deixado. E então começa outro tempo, o de partilhar. De permitir que a obra encontre o mundo, se afaste do ateliê e caminhe sozinha.
Mas esse gesto carrega risco. Um desconforto que acompanha quem cria com verdade: o risco de ser diluído, recortado, descontextualizado. O risco de ver sua criação apropriada, replicada, assinada por outras mãos.
Vivemos um tempo em que a imagem circula mais rápido do que o pensamento. Com a velocidade, vem a distorção, o recorte, o esquecimento. Publicar passou a ser parte do ofício, mas também uma renúncia. Quem publica com verdade sente: sente a exposição, o medo, a distância entre o vivido e o que pode ser interpretado.
Ainda assim, o que de fato pode ser copiado?
Um traço. Uma paleta. Um enquadramento. Mas não o silêncio do ateliê. Não a hesitação do primeiro gesto. Não a dor contida em uma curva, nem o tempo bordado em camadas de tinta. Isso ninguém leva. Isso só o artista conhece. E o olhar treinado reconhece de longe.
A técnica protege? Em parte. Uma imagem desfocada, uma assinatura embutida, um detalhe que não se revela de imediato. Mas o que realmente protege uma obra não está na moldura nem no arquivo digital. Está naquilo que não pode ser extraído: o porquê.
Toda criação autêntica tem uma raiz invisível. É nela que reside a autoria. E é isso que escapa a qualquer imitação: a fonte. O processo. O sentido.
Uma pintura nascida com inteireza não se esvazia em espelhamento.
Carrega algo que não está à venda, nem exposto. Carrega história. E história não se plagia.
O que sustenta uma obra não é o que ela mostra, mas o que ela guarda.
Por isso, a autoestima de quem cria precisa estar ancorada nessa convicção: o gesto que nasce de dentro não se dissolve porque foi visto. Ele permanece. Ele resiste.
Sim, o plágio existe. Ronda, se mascara de homenagem, se infiltra. Mas o tempo separa o que é ruído do que tem lastro. E é nesse intervalo que a autoria se confirma. A cópia, por mais bem feita, nunca carrega intenção. Reproduz a superfície, mas falha diante do que pulsa.
Resistir ao medo do plágio é também um sinal de maturidade. É seguir em frente sabendo que o que se faz com verdade não se apaga com o clique de ninguém. Que a arte, quando é inteira, não teme ser vista. Porque ela sabe de onde veio. E quem sabe de onde veio, não se perde.
Autoria não é burocracia. É um pacto com o invisível. E isso, nenhum scanner captura.
Não escrevo como quem nunca sentiu. Já vi ideias minhas replicadas sem nome, textos reescritos, imagens deslocadas do contexto. Mas hoje entendo com clareza: o que sustenta uma obra não é o aplauso, nem os compartilhamentos, muito menos a apropriação. O que sustenta é o lastro. O que resiste ao tempo. O que tem origem.
Sigo criando com essa consciência. E é isso que desejo a quem me lê: que nunca troque a força do próprio gesto pelo receio do espelho. Porque o espelho distorce. Mas o olhar verdadeiro reconhece.