Entre o sagrado, o urbano e o instinto: o gesto pictórico de Boby Gonçalves
- Marisa Melo
- 3 de nov. de 2023
- 2 min de leitura
Atualizado: 16 de mai.

O trabalho de Boby Gonçalves nasce do cruzamento entre mundos. Não apenas técnicas, mas vivências. Há nele a pulsação de quem cresceu entre sons e traços, entre o silêncio do desenho e a fúria da cor, entre a escuta do corpo e o instinto da criação. Com uma trajetória que atravessa a música, a tatuagem e a pintura, Boby entrega ao espectador não um estilo fixo, mas um território sensível onde o sagrado, o urbano e o ancestral se encontram em tensão e beleza.
Sua linguagem visual é híbrida, como ele mesmo. O figurativo não se limita à forma reconhecível, ele se dissolve e se recompõe em meio a borrões, respingos e camadas de energia que parecem vivas. Há algo que explode e algo que esconde. A figura nunca está completamente entregue. Olhamos e sentimos que ela quer fugir, mas nos encara. Esse embate entre presença e fuga é uma marca de sua pintura.
A paleta de cores revela dois mundos. Em algumas obras, os tons são intensos, quase viscerais, como o vermelho que invade a superfície com a força de um incêndio emocional. Em outras, o artista mergulha em tons mais frios, onde azuis e violetas criam atmosferas espirituais e introspectivas. Mas mesmo nessas, há sempre um respiro de contraste, como se a luz precisasse encontrar uma fresta. O preto e branco serve de base sólida, como se fosse tatuagem na tela, lembrando a origem da linha na carne.
Boby Gonçalves pinta como quem traduz estados internos. Seu trabalho não descreve, mas transborda. É o retrato de uma presença que se multiplica: o rosto coberto de símbolos, a face fragmentada pelo amor e pela perda, o Cristo não como ícone, mas como homem que olha. Em sua série com referências à cultura mexicana, como os rostos com pintura de Dia de los Muertos, ele desloca o olhar para uma dimensão ritual, onde o que se vê carrega também o que se sente, e o que se teme.
Há algo de espiritual em sua pintura, mas não espiritual no sentido religioso. É espiritual como travessia. Como aquilo que não pode ser dito, mas pode ser visto. As asas, os olhos fechados, as bocas costuradas, os gestos suspensos em meio ao caos das cores, tudo parece nos dizer que há uma camada por trás da aparência. E ela pulsa.
Mesmo quando se utiliza de ícones populares, Boby não faz citação vazia. Ele mergulha no símbolo com respeito e rebeldia, redesenhando suas camadas. Seu gesto é livre, mas nunca desatento. A pincelada, por mais solta que pareça, está à serviço da imagem, da energia, do impacto sensível. É uma pintura que dança com a intensidade e, por isso mesmo, permanece viva.
Seu diálogo com a cultura brasileira é latente, ainda que não explícito. Está na força do rosto, na dramaticidade da cor, no modo como o gesto se impõe sem precisar explicar. A natureza aparece como forma de energia, no vento que sopra pelas asas, no vermelho que queima como fogo, no olhar que atravessa o visível.
O que Boby Gonçalves faz é mais do que compor imagens. Ele acende portais. E nos convida a atravessá-los.